quarta-feira, 17 de outubro de 2007

É a cultura, frouxo! – parte II

Com a proliferação do youtube, o escalador não vê mais nada que não seja filmes de escalada. Como se antes de escalar visse outros filmes que não fossem porno. Passamos, portanto, de filmes de gajas nuas para filmes de gajos nus. Com cordas.
De modos que me vejo obrigado a educar o povão escalador, fazendo um pequeno apanhado das últimas estreias cinematográficas que vos têm passado ao lado:

Star Wars

História de um bacano chamado Luke Parady Skywalker. Jovem com potencial, é apadrinhado pelo mestre Obi-Graham Kenobi, que vê nele a nova esperança da escalada e a única hipótese de sacar um projecto bem duro. Luke vai encadeando tudo o que lhe aparece à frente, com e sem sabre de luz. No entanto, a tentação do lado negro da força é grande… à medida que a dificuldade vai aumentando, o nosso herói terá de resistir a talhar umas presas nas secções mais duras de rocha. É aí que o malévolo Imperador, acompanhado do seu lacaio Darth Vader (um gajo que, apesar de só escalar em blocos - com talhados - anda sempre de capacete), constrói uma arma terrível, a furadeira da morte, com a qual pretende talhar bidedos (acompanhados da respectiva tickmark) capazes de transformar qualquer 9c num quarto grau. Conseguirá o lado bom da força prevalecer?

Indiana Jones e a grande cruzada

Como Indiana Jones, um escalador frouxo, se embrenha na demanda pelo santo graau. Esta demanda tem lugar na Alemanha, mais propriamente em Frankenjura: Seguindo o mapa desenhado no velho diário de seu pai, Indiana terá de decifrar o croqui e encontrar o local onde se encontra o santo graau, um oitavo super oferta que diz que se faz em meia dúzia de tiros. Tudo isto enquanto tenta escapar aos escaladores alemães, que cobiçam avidamente a first ascent da via. O filme explora também a relação conturbada de Indiana Jones com o seu pai. Juntos irão conhecer-se mutuamente e passar por mil perigos. No final do filme, e depois de encontrar um velho cruzado que lhe ensina o truque para passar o crux, Indiana Jones lá dá um tiro decente no projecto. Mas as peripécias ainda não terminaram: quando o intrépido aventureiro, todo esticado e com a espinha a sair-lhe pelo cú, já ‘tá a tocar a reglete de onde se chapa o top, o gatilho da última expresse abre-se. O nosso herói vê-se confrontado com uma difícil decisão; pode tentar agarrar a presa mas corre o sério risco de amandar um voo daqueles, que normalmente só é amparado pelo chão, 30 metros mais abaixo - os sacanas dos nazis eram forretas nas protecções. A voz sábia do pai de Indiana chama-o à razão, proporcionando um final de filme enternecedor, com a reconciliação entre pai e filho e a percepção que a demanda pelo santo graau está em cada um de nós (o que quer que isto queira dizer). Por outras palavras, Indiana acagaçou-se e destrepou.

Brokeback Mountain

Uma bonita história de amizade entre dois escaladores, que começa quando ambos passam uma temporada a trabalhar num refúgio e a escalar nas montanhas. Quando vem a chuva e as vias molham, ambos regressam ao quotidiano.
Apesar de casarem com as respectivas namoradas e prosseguirem com as suas vidas, ambos continuam a encontrar-se, disfarçando o real propósito dos seus encontros de escalada com a desculpa de que vão pescar. No entanto a mulher de um deles desconfia que a cana de pesca serve, na verdade, para chapar as protecções das vias mais duras. Face a esta suspeita, a teoria de que o marido é maricas ganha forma na mente da desgostosa esposa.
À medida que os anos passam, os compinchas apercebem-se que têm objectivos diferentes na escalada. Enquanto um acalenta o sonho de irem viver juntos para maple canyon, um fabuloso spot de escalada com protecções de metro a metro, o outro tem medo de represálias da comunidade, por estar sempre a escalar em top. E, de facto, o pior acontece, com um dos amigos a ser assassinado às mãos de três escaladores que o viram a encadear uma via com a terceira pré-chapada. O filme termina de forma triste, com a personagem principal lembrando saudosamente as tantas e tão belas trepadas que deram juntos.

O Rei Leão

Denominado King Lines no original, o filme narra o encontro de dois colossos maiores da escalada mundial e, simultaneamente, as nossas vítimas preferidas aqui no blog. Adivinharam: São Chris Sharma e Nuno Pinheiro.
A película (apesar de o ter visto em DVD achei que ficava bem usar este substantivo e, além disso, já me tinha usado “o filme” no parágrafo anterior) foca os problemas de dependência do personagem principal, que o obrigam a viajar por todo o planeta e a escalar as linhas mais difíceis só para arranjar um bocado de erva. Para os mais desatentos, lembro que estou a falar do Sharma. Entre escalada, trips de escalada e trips (sem escalada), as personagens usufruem da rodinha da paz e dançam o hakuna matata (cuja tradução livre "há cu na mata, tá?", ficava melhor no filme anterior, mas não se pode ter tudo).
O Rei Leão caracteriza-se por ter sido filmado ao melhor estilo David Linch, isto é, baralhando e confundindo o espectador, mercê da quantidade e duração dos monólogos do protagonista. Num emocionante final, Chris Sharma, mesmo depois de conviver com Dave Graham e Nuno Pinheiro, é bem sucedido no encadeamento de um duro projecto, sem aparentar qualquer sintoma de asa levantada.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Gedeão da Frouxidão

Rocha Filosofal

Eles que não sobem não sonham
O que é esforçar-se na via
Não concreta e definida
Como outra via qualquer,
Como este granito cinzento
Em que ora subo, ora sento
Como esta calcite branca
De caprichosos torneados,
Como estes penhascos alados
Que em negro ruivo assomam,
Como estas rapinas que os tomam
Em brincadeiras de vertigem

Eles que não sobem não sonham
O que é grau, é chapa ou piton,
Tige forte ou perno bom
De aço A4 ou mero spit,
Do 8a+ ou da élite,
Numa eterna ascensão.

Eles que não sobem não sonham
Que é muro, é prumo, é buracos,
Diedro, fenda com tacos,
Bidedo, aplat, chorreira,
Crista, placa regleteira,
Pináculo dum esporão,
Contraforte, paredão,
Invertido, pinçamento,
Tendinite, dor e unguento,
Croqui, cordada, expresso,
Encadeamento, sucesso,
Que é filho de fracassos,
Vindos de sisal, arnês de laços,
Bota rígida do pioneiro,
Tentativa do primeiro,
Artificial, subprumo, atlético
em livre, sentido ético,
Encordamento, corrente,
De segundo, em top, à frente,
descensor, grigri, shunt,
mosquetão, fissura elegante,
pé-de-gato, queda, dinâmico
líquen de aroma balsâmico,
na superfície mineral

Eles que não sobem não sonham,
Que é o sonho que gera a via
que sempre que um homem sonha
o mundo estica e avança
como a corda colorida
entre as mãos de uma criança

Adaptação barrasca do poema Pedra Filosofal, In Movimento Perpétuo, 1956, de António Gedeão