terça-feira, 23 de janeiro de 2007

diário de um frouxo

Querido bló:

Têm sido dias muito ocupados, estes. A escalagem rouba-me tempo para as coisas realmente importantes na vida, como escrever neste estaminé. Mas sinto que está a valer a pena. O projecto está cada vez mais perto. Ontem dei-lhe o pegue nº 425 - o terceiro à frente. É óptimo ver que já começo a ir à frente com regularidade.
Mas as boas notícias não terminam aqui. Sinto que estou cada vez mais consolidado na via. Há vinte pegues que a coisa não me corria tão bem. E, confesso, já estava a desanimar. Mas ontem voltei a cair novamente no passo da reglete. Ou seja, semana sim semana não, chego à reglete. Antes era de mês a mês! Há aqui, sem dúvida, uma evolução. Não há-de faltar muito para que comece a pensar em lançar para o bidedo. Depois disso, quem sabe? Tudo é possível. Até chegar ao passo duro a encadear!
Mas por enquanto importa manter os pés bem assentes na terra. E concentrar-me no que tenho para optimizar. Estou quase a fazer a secção de continuidade de seguida! Há um passo do meio que já não me custa tanto. Foi só mudar o pé para a parte direita da prateleira, e pumba! já sai em estático. Quem sabe não foi esse bocadinho de energia que poupei que me fez agarrar a reglete, colocar o pé na presa e, imediatamente antes de cair, olhar para o bidedo com determinação! É altamente motivante perceber que estou a evoluir na via. Mal posso esperar para lá ir de novo!

Bem medidas as coisas, estou convencido que o 6a sai mesmo este ano. É tão bom começar 2007 com optimismo…

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

O triunfo dos frouxos e a Ordem Natural

Ai que saudades daqueles tempos em que a escalada era domínio de uns poucos!
Dentro do punhado de praticantes, venerava-se uma elite de Senhores da Escalada - verdadeiras tríades de tudo o que dizia respeito à modalidade - Só eles sabiam tudo. Falava-se que conheciam todas as escolas mitológicas de escalada… tinham os nomes associados ao algarismo 7... 7... Naqueles tempos… Vejam só!

Era uma experiência fascinante. Víamo-los, pouco, fugazes e altivos mesmo quando estavam logo ali ao lado o dia todo.
Voltávamos para o pé dos companheiros, mais prestigiados só por ter estado com o X a fazer xx e a cumprimentar o Y .
Nas falésias, nas lojas de material, na pastelaria de turno, era um espectáculo divinal. As brumas da mística envolviam tudo e todos os que há mais tempo se agarravam à escalada.
Havia até provas não oficiais de perícia para ver quem conhecia mais artigos dos catálogos da Petzl, as peças mirabolantes de equipamento, embora só tivesse utilizado o oito e umas expressos, na prática. Decoravam-se fichas técnicas com uma fidelidade dogmática.

Velhos tempos em que o arnês era "bôdríê", ou "baudrié" ou burrié, já nem sei …. Era um banho de influências francófonas. Uma “souplesse” com que “doucement” se baixava o companheiro da via de “reglettes” e “goutes d’eau”, feliz por ter conseguido o passo de “pied-à-main”.
Havia provas de vinculação, apreciáveis pelo vestuário de culto (às marcas especialistas) em que se avaliava quem envergava mais vestimenta técnica (para levar uma vidinha quotidiana de cidade) e também no tempo de permanência em contacto com os símbolos da escalada. O que posicionava favoravelmente todos aqueles que operavam nas escassas lojecas e seus dilectos amigos.
Eram autoridades, a quem interrogávamos acerca de uma peça de equipamento ou vestuário técnico de preço injurioso, mas não tão caro como uma informação vinda das suas bocas monossilábicas.

A título de exemplo, o iniciado, num certame da especialidade, perguntava:
- Por favor… quanto custa este rolo de corda?
Resposta: [intervalo de tempo] Rolo de corda? Rolo de corda? Isto é cabo estático de 11mm! …altamente técnico! Isto é só para ser utilizado por quem sabe! (como quem diz: achas que tens nível para comprar um produto destes? Tens que implorar, cão!)
Expositor seguinte:
Pergunta: - Por favor…Quanto custa este cabo?
Resposta: [intervalo de tempo] (como quem diz já me deves 10 melréis) “Cabo? Cabo? Cabo só se for o da Marinha.!... Cabo é da vassoura!...etc. & tal…”
Admiráveis episódios similares nos percorrem a memória. Desta forma a sociedade organizava-se espontaneamente.

Que riqueza nas mensagens implícitas que guarneciam os olhares abreviados, e as frases dispendiosas e curtas a rebentar de subentendidos de conteúdo gasoso.
Havia uma escala de “ascensão social” ligeiramente correlacionada com a evolução desportiva do escalador. A célula social básica era a do patrono e os seus párias.
Isso é que eram os bons velhos tempos. Agora dirige-se a palavra a qualquer um num grau intimista altamente reprovável. Parece um jardim infantil cheio de amiguinhos culambistas. Uma moleza de carácter que nada tem que ver com o trato austero e sóbrio de outrora. Todos dirigem a palavra a todos… Mas o que é isto?! Onde ficam as boas maneiras?
As vias outrora cobertas de véu de tabu, correm hoje sérios riscos de se verem encadeadas por escaladores prematuros, num desvario debochista, capaz de fazer desmoronar as mais altas hierarquias e mitos rupícolas do nosso tempo.
Porque é que as pessoas não se colocam nos seus lugares? Escalador de Vº é escalador de Vº e deve reverência aos escalões seguintes sucessivamente. Compreendam isto, insurrectos!

Eu, por mim, desde já afirmo que não terei a ousadia de dirigir mais palavra à “Redondinha”, enquanto o seu primeiro oitavo não for devidamente decotado, como mandam os bons costumes.
E isto sim! Isto é que são modos de gente bem-educada.
Já o outro condómino deste estaminé abordou um pouco deste tema na ”A frouxidão dos incentivos”.
Não há cá “bom dia” nem “olá”!
É:
- “Qual é o teu grau?!”; “com quem costumas escalar?”; “Eu já fiz estes graus todos e conheço a Maria e o Manel…”
E a partir daí, é só seguir a ordem natural das coisas.