terça-feira, 7 de novembro de 2006

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Noutro dia, um amigo aconselhava-me contra a tentação de me empenhar em demasia na escalada, em detrimento de outros prazeres (e deveres) da vida. Dizia-me ele que era importante saber colocar as coisas em perspectiva e não depositar todas as esperanças, energias e motivações unicamente na escalada. Porque se a escalada falha, se a motivação se vai… a verdade é que todos nós sabemos o que é o vício, aquele gostinho especial de tentar fazer a via, a parede, o cume… e aquela ânsia que nos faz esquecer rapidamente o sucesso de ontem e que faz a nossa vida girar em função do objectivo de amanhã.
Por paradoxal que pareça, a conversa acabou por incidir sobre a escalada como objectivo de vida. Apesar de tudo, não será legítimo devotar o nosso esforço a subir calhaus? Se outros trabalham para poderem gastar os fins-de-semana no Colombo, porque raio não poderemos nós trabalhar para a escalada de fim-de-semana? Neste breve período em que estamos animados, em que não somos simples matéria orgânica, haverá alguma razão que nos impeça de desfrutar ao máximo? Quando morrermos, o que levamos connosco? O que é mais legítimo? Passarmos a segunda metade da vida conduzindo um Mercedes SLK ou podermos dizer que subimos ao ponto mais alto de cada parede que encontrámos?
Hoje, quando estava a preparar-me para atravessar a rua, hesitei em apertar o botão de um semáforo. Veio-me à memória a criança que morreu em Lisboa, há alguns anos, depois de carregar no botão para que o semáforo passasse a verde. E lembrei-me de uma frase feita, dita numa conversa que tive há cinco dias com um amigo, sobre a infeliz notícia do dia anterior. O meu amigo, que não conhecia o Bruno Carvalho, disse-me “ao menos, morreu a fazer aquilo que mais gostava”. Na altura, pareceu-me um ponto de vista quase banal, até porque não estava capaz de ter uma leitura tão fria da situação. Mas agora, colocando as coisas em perspectiva, penso sobre qual será a forma mais estúpida de morrer: após realizar o sonho de anos, talvez de uma vida, mesmo que este tenha sido pago com o preço mais alto, ou electrocutado por um semáforo?
Muitos amigos meus que obviamente não escalam comentam a morte do Bruno apelidando o seu sonho como um acto louco, impensado, pura e simplesmente um desafiar da morte. Reduzir esta tragédia à condição da consequência natural de um acto gratuito e irracional é retirar todo e qualquer significado à vida do nosso companheiro. Sei que ele conhecia os riscos mas a sua vontade de sonhar falou mais alto. Porque ele sabia que só seguindo os nossos sonhos poderemos ser felizes. Apesar de conhecer o risco, o Bruno escolheu ser feliz.



Não te esqueceremos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não me pareces assim tão frouxo com as palavras...bem pelo o contrário!!

Hoje, o dia amanheceu solarengo. Venho pela rua pensando em que terei (infelizmente) de passar mais um dia diante deste computador. Sento-me...dou a tipica voltinha pelos blogs...e...zás!!! Deparo-me com estas palavras ao som desta musica!!!

Como eu te entendo...

Miguel Grillo

frouxo disse...

obrigado, miguel.

hesitei bastante antes de escrever o texto, mas acho que são estes infelizes momentos que nos mostram que temos o dever de aproveitar a vida. quanto à música, tinha feito um acordo com o bruno, que infelizmente não cheguei a cumprir, de lhe dar um cd de mp3 de jeff buckley. ainda bem que gostaste.